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A Polipose Adenomatosa Familiar (FAP-sigla em inglês) é uma doença marcada pelo surgimento de centenas a milhares de pólipos adenomatosos colorretais durante a segunda ou terceira década de vida. Possui incidência em torno de 2 por milhão e prevalência de 40 por milhão, afetando igualmente homens e mulheres. Porém, é uma doença que possui um componente hereditário, ou seja, significa que é mais prevalente em pessoas de uma mesma família, do que de uma outra, sendo que pacientes com FAP tem uma forte predisposição para início precoce de Câncer Colorretal (CCR), assim como outras malignidades. Frequentemente, a FAP está associada a mutações em dois principais genes: APC e MUTYH.
A polipose associada ao gene APC (adenomatous polyposis coli) é uma condição dominante, ou seja, parentes de primeiro grau de um indivíduo afetado possuem 50% de risco de herdarem a mutação. Esse gene é um supressor tumoral (classe de genes envolvidos no controle do crescimento celular) localizado no braço longo do cromossomo 5 (5q21) responsável por codificar uma proteína multifuncional que regula diversos processos celulares, incluindo transcrição, controle do ciclo celular, migração, diferenciação e apoptose. Uma mutação neste gene resulta na ausência da proteína APC ou na formação de uma proteína truncada, causando, assim, o descontrole da proliferação celular. Esse descontrole culmina no fenótipo da doença, que para o gene APC há a possibilidade de duas variantes: a FAP clássica, caracterizada pela presença de 100 a 5.000 pólipos adenomatosos no cólon e reto, diagnosticados de 20 a 30 anos de idade e com inevitável chance de evoluir para câncer colorretal futuramente; e a FAP atenuada (AFAP) que possui menor número de pólipos e evolução menos agressiva. Já a polipose associada ao gene MUTYH (homólogo humano do MutY) é uma condição recessiva, na qual descendentes de primeiro grau de um paciente apresentam risco apenas se os dois pais apresentarem, pelo menos, uma mutação cada um no gene. O gene MUTYH está localizado no braço curto do cromossomo 1 (1p32-34), apresenta 16 éxons e codifica uma proteína de 535 aminoácidos que atua no reparo de DNA por excisão de base. A proteína funcional contribui para a proteção das células contra espécies reativas de oxigênio, potencial agente mutagênico, produzido no metabolismo anaeróbico. Logo, mutações nesse gene levam a incapacidade de reparo do material genético, possibilitando a manifestação da polipose. Por ser uma polipose que se desenvolve a partir da mutação bialélica do gene MUTYH, esta é chamada de Polipose Associada ao MUTYH (MAP). Contudo, o fenótipo da doença é mais comumente parecido com AFAP, mesmo que em alguns casos possa ser sugestivo de FAP clássica. Vale destacar, portanto, que, mesmo que o indivíduo possua uma mutação no gene MUTYH, não significa, necessariamente, que ele tenha câncer colorretal. Se ele possuir a mutação nas duas cópias de MUTYH, visto que se trata de uma herança autossômica recessiva, ela tende a desenvolver polipose mais tardiamente (30 - 50 anos de idade). Porém, é importante ressaltar que em pacientes com Polipose Adenomatosa Familiar, se não tratado, o risco de desenvolver Câncer Colorretal gira em torno de 100%. Dentro da literatura disponível atualmente, é estimado que cerca de 1 a 2% da população geral carregue uma variante patogênica MUTYH que causa a MAP. A partir da frequência de heterozigotos de MUTYH, a prevalência de PAM (clínica e portadores bialélicos subclínicos) pode ser calculada em cerca de 1:10000; no entanto, a penetrância das mutações bialélicas de MUTYH ainda é desconhecida. Ficou curioso para saber mais sobre como o gene MUTYH atua no reparo de DNA? A via de reparo de excisão de bases (BER - sigla em inglês) é um mecanismo celular que auxilia na remoção de bases danificadas - presentes nas bases nucleotídicas do nosso DNA - que poderiam gerar mutações ou a quebra do DNA durante a replicação celular. Esse mecanismo é iniciado pelas glicosilases de DNA, as quais realizam o reconhecimento de bases danificadas, posteriormente, removidas por AP endonucleases e assim, uma DNA polimerase realiza o preenchimento com uma base correta. Nesse processo de reparo, o gene MUTYH codifica uma glicosilase de DNA envolvida na via BER e especialmente, no reparo de danos oxidativos no nosso DNA, ou seja, busca evitar diversas “modificações indesejadas” no nosso código genético! Mas e aí, como essa via está relacionado com o quadro de polipose adenomatosa familiar? Um estudo realizado por geneticistas da Universidade de Wales/UK, em 2002, investigou uma família britânica (família N) onde três irmãos foram afetados por múltiplos adenomas colorretais e consequentemente, desenvolvimento de câncer colorretal. Primeiramente, foram identificadas mutações somáticas e não hereditárias no gene APC (diferentemente das duas principais variantes de FAP), ou seja, mutações que foram ocorrendo ao longo da vida dos irmãos, as tais “modificações indesejadas”. Nesse sentido, verificaram um padrão mutacional somático recorrente: G:C por T:A. Comparando com banco de dados, avaliaram as mutações na família N (entre os irmãos e parentes) sendo significativas e buscaram identificar fatores genéticos que justificassem esse padrão. Por fim, após diferentes análises com genes responsáveis por reparos genéticos, especialmente os ligados ao reparo de bases G:C, revelaram a característica heterozigótica composta para o gene MUTYH na família N. Esse fator implica na diminuição da atividade enzimática da glicosilase MUTYH no reparo de DNA, devido a modificações estruturais proteicas (principalmente, Y165C and G382D), e somado aos danos oxidativos excessivos na região colorretal, propiciam diversas mutações somáticas/esporádicas no gene APC. Essa descoberta possibilitou a otimização do aconselhamento genético, teste e vigilância de novos casos de FAP. Mas então, como é feito o diagnóstico? O diagnóstico inicial baseia-se na história familiar e nos achados clínicos do número e histórico de pólipos adenomatosos colorretais realizado por endoscopia do intestino grosso ou colonoscopia total. A presença de vários pólipos colorretais adenomatosos pode ser causada por FAP , MAP ou outras síndromes semelhantes, por isso um histórico familiar detalhado é importante na hora de determinar qual é a condição, sendo um desafio para os médicos. Assim existe suspeita de MAP quando uma pessoa tem 10 ou mais adenomas do cólon ou retal e não possui uma mutação no gene APC associado à FAP. Também um diagnóstico de MAP pode ser considerado se uma pessoa tem irmãos ou irmãs que apresentam múltiplos adenomas colorretais, mas os pais não possuem histórico de múltiplos pólipos do cólon ou câncer. Além disso, achados clínicos que indicam a MAP podem conter hipertrofia congênita do epitélio pigmentar da retina (CHRPE), cistos epidérmicos e osteomas. O teste molecular é utilizado para diagnóstico confirmatório. A maioria dos indivíduos com MAP possuem pelo menos 1 das 2 mutações mais comuns em MUTHY, p.Y165C e p.G382D, porém existem também outras mutações no MUTYH que podem ser detectados por testes completos de sequenciamento genético, por isso é recomendado que o teste seja realizado pela primeira vez para as duas mutações mais comuns, antes de prosseguir com o sequenciamento completo do gene. Uma vez que um indivíduo é diagnosticado como portador de mutações bialélicas de MUTYH, o aconselhamento genético torna-se fundamental para que a família seja instruída quanto à possibilidade dessa mutação ser herdada e sobre a importância da realização de um diagnóstico precoce para a redução dos riscos de desenvolvimento de câncer. Enfim, caso diagnosticado, quais são as possibilidades de tratamento? Todo os pacientes diagnosticados com mutações bialélicas em MUTYH são acompanhados por vigilância clínica e dependendo do número de pólipos apresentados (<100), devem ser submetidos a colonoscopia com polipectomia. Esse procedimento é realizado com periodicidade pré determinada e tem por objetivo a retirada de pólipos junto a uma endoscopia do intestino grosso e reto, já pacientes com quadros mais brandos podem ser acompanhados apenas por colonoscopia na prevenção do desenvolvimento de um quadro clínico mais severo. Os quadros que apresentam um número elevado de pólipos (>100) ou o agravamento de quadros brandos podem optar pelo procedimento de colectomia, retirada total ou parcial do cólon e gânglios linfáticos próximos. O acompanhamento pós cirurgia deve incluir endoscopia anual do reto ou bolsa ileal e exame de uma ileostomia a cada 2 anos, com fins de identificar possíveis crescimento de novos pólipos. Referências AIHARA, H. et al. 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Maio 2022
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